Em um movimento que reforça o caráter laico do Estado e busca reparar dívidas históricas com as tradições de matriz africana, o Rio de Janeiro tornou-se o primeiro estado do país a reconhecer oficialmente a validade civil de casamentos celebrados em centros de Umbanda e Candomblé. A medida, estabelecida pela Lei 11.058/25, é de autoria do deputado estadual Átila Nunes (PSD) e foi sancionada pelo governo fluminense.
A nova legislação permite que a conversão das uniões religiosas em casamentos com efeitos civis siga os parâmetros já estabelecidos pelo Código Civil (Lei 10.406/02) e pela Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/73). Na prática, a norma retira os terreiros de uma invisibilidade jurídica que perdurava enquanto outras instituições, como a Igreja Católica e denominações evangélicas, já gozavam desse reconhecimento.
A Voz da Fé: Combate ao Racismo Religioso
Para especialistas e lideranças do setor, a sanção não é apenas uma mudança burocrática, mas um golpe contra o racismo estrutural. A cientista da religião e jornalista Claudia Alexandre, que também é sacerdotisa e celebra ritos em Paraty há duas décadas, vê a decisão como uma admissão necessária do valor das tradições pretas.
“Esse é um passo importante que vai contribuir para a eliminação do estigma que recai historicamente sobre as religiões afro-brasileiras. Celebrações de batismo, casamento e fúnebres sempre foram realizadas pelos terreiros e o Estado Laico precisa reconhecer a autoridade religiosa, assim como reconhece as celebrações na Igreja Católica”, diz Claudia.
A sacerdotisa reforça ainda que a lei representa uma proteção em um cenário de hostilidade crescente:
“Em um país que naturaliza o aumento do racismo religioso, a lei é uma conquista, mesmo que, por enquanto, seja apenas no Rio de Janeiro”, complementa.
Regras e Procedimentos: Como validar a união
Para que a celebração religiosa produza efeitos civis imediatos, os noivos e as autoridades religiosas devem seguir um protocolo rigoroso de documentação. A validade depende de uma declaração lavrada pela autoridade celebrante, que deve conter:
- Dados dos Noivos: Nome completo, CPF, RG e endereço residencial;
- Dados da Cerimônia: Data, local exato e hora da celebração;
- Identificação Religiosa: Dados da autoridade celebrante e do templo, terreiro ou casa religiosa;
- Testemunhas: Assinaturas do celebrante e de, no mínimo, duas testemunhas da comunidade.
Após a cerimônia, este documento deve ser encaminhado ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais competente, respeitando os prazos e a documentação exigida pela legislação federal para a habilitação do casamento.
Sugestão de imagem: Uma foto respeitosa de uma cerimônia religiosa de matriz africana, focando em elementos rituais como flores e as mãos dos noivos. Texto alternativo (alt): Casamento religioso em centro de Umbanda e Candomblé sendo celebrado conforme a nova lei do Rio de Janeiro.
Autoridades Habilitadas e Autonomia Espiritual
A Lei 11.058/25 é cuidadosa ao definir quem possui legitimidade para assinar as declarações. O texto reconhece como autoridades habilitadas:
- Sacerdotes e sacerdotisas;
- Babalorixás e Ialorixás;
- Pais e mães de santo;
- Chefes de terreiro e lideranças espirituais tradicionalmente reconhecidas.
O deputado Átila Nunes ressalta que o objetivo é preservar a autonomia das comunidades. Segundo o parlamentar, a iniciativa assegura princípios constitucionais de liberdade religiosa e dignidade humana.
“É um processo de equidade. As igrejas católicas e evangélicas têm todos os direitos que as religiões de matrizes africanas não tinham. A grande vitória é que agora os casamentos nesses ritos poderão ter efeitos civis”, afirma o autor da lei.
Vetos e os Desafios do Racismo Estrutural
Apesar do avanço, o processo de sanção não foi isento de controvérsias. O governador Cláudio Castro vetou dois dispositivos importantes da lei original. O primeiro previa punições a cartórios que se recusassem a processar documentos de terreiros de forma discriminatória. O segundo autorizava campanhas educativas e capacitação de agentes públicos sobre as tradições afro-brasileiras.
Os vetos foram baseados em questões de competência jurídica, alegando que punições a serventias dependem da União e que a imposição de diretrizes políticas ao Executivo violaria a separação de Poderes. Claudia Alexandre, no entanto, interpreta os vetos como sinais de resistência institucional.
“São obstáculos que anunciam que ainda haverá dificuldades para o reconhecimento real do direito à liberdade religiosa. Faz parte do racismo estrutural esse jogo de poder, essa política histórica de limitar os direitos”, analisa a cientista.
Ela traça um paralelo com a Lei 10.639/03 (ensino de história afro-brasileira), que ainda enfrenta dificuldades de implementação:
“Campanhas de valorização às religiões afro-brasileiras ajudariam a combater o estigma e as distorções sobre as heranças e a cultura negro-africana, que são a base de formação da nossa sociedade”, finaliza Claudia.
Com a nova lei em vigor, o Rio de Janeiro se posiciona na vanguarda da proteção à diversidade cultural, cabendo agora à sociedade e aos órgãos de fiscalização garantir que o direito seja exercido plenamente em todos os cartórios do estado.
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*Com informações: Agência Brasil
